Há uns dias atrás, minha afilhada interrompeu meu descanso pós expediente de trabalho (largada no sofá reunindo forças de não sei onde para impulsionar meu corpo na direção do banheiro) e elogiou meus olhos. O formato e a cor. Ela disse que eram redondos e bem escuros e que quando eu falava eles brilhavam. Agradeci aquelas palavras tão bonitas, ditas de forma tão inusitadas e que me fizeram tão bem naquele momento. Aproveitei o entusiasmo e me levantei num pulo do sofá. Ainda não decidida a tomar banho, fui buscar dentro da minha bolsa o livro que tinha iniciado a leitura um pouco mais cedo, naquele mesmo dia.
O olho mais azul. De Toni Morrison.
Sempre que me perguntam o que gosto de ler, respondo que curto de tudo um pouco. Considero minha estante um universo bem eclético, onde consigo acessar uma diversidade interessante de conteúdo. Mas assumo que tenho minhas preferências. E a nº 1 é a boa e velha ficção. Minha coleção é majoritariamente formada por clássicos da literatura, muitos herdados de minha mãe e outros adquiridos por indicação dela. Ultimamente tenho feito um exercício para consumir mais literatura contemporânea (ainda ando bem devagar nesse sentido) e, para esse ano de 2023, assumi também o compromisso de priorizar a leitura de obras de escritoras negras.
Toni Morrison estava no meu radar já há um bom tempo, mas um certo alguém me confidenciou que os livros dela abordavam temas muito pesados e geralmente continham relatos bem triste e, por isso, não recomendava a qualquer pessoa a leitura. Eu peguei aquela informação, guardei comigo e toda vez que pensava em tirar O olho mais azul da estante alguma coisa me fazia desviar a direção e pescar outro título.
Em minha defesa, a maioria dessas tentativas se deu no contexto da pandemia do Covid-19 (e de um relacionamento abusivo, que ciumava da minha relação com livros e música), o que me levava sempre a escolher não acrescentar mais angústia a minha situação já bem complicada (como a de todo mundo, especialmente aqueles vivendo na vulnerabilidade provocada pelo desgoverno bolsonarista).
Eis que chega 2023, venço esse medo bobo (junto com Lula) e me lanço no universo de Toni Morrison em O olho mais azul. E não é que descubro que aquela pessoa que me orientou a evitar a leitura estava completamente equivocada? (claramente uma pessoa que não tinha urgência alguma em encarar os debates propostos pela autora. hoje consigo perceber isso)
Sim, é um tema forte, uma leitura pesada, um soco no estômago que ainda está aqui latejando, mas quando fechei o livro só queria que todo mundo pudesse lê-lo, compreender a importância do que está sendo comunicado ali e, assim, ser um agente de mudança dentro do seu contexto social.
O olho mais azul conta a história de Pecola Breedlove, uma menina/adolescente de 14 anos, negra, que mora nos Estados Unidos, no período entre guerras, e que sonhava em ter olhos azuis, pois acreditava que só assim experimentaria o amor e cuidado que ela via sendo dispensado às crianças brancas.
A história é narrada sob o ponto de vista de uma outra criança, Claudia, um pouco mais nova, mas que já percebia as dinâmicas do racismo na sociedade em que vivia. Diferente de Pecola, que de forma ingênua acreditava que a cor dos olhos mudaria a forma como as pessoas a tratavam, Claudia entendia que aquela característica era apenas uma das inúmeras que justificavam o tratamento desumano imposto às pessoas como ela, negras.
Claudia sentia raiva dos olhos azuis. Pecola via neles esperança de uma vida melhor.
E é exatamente nesse ponto que a história me parte o coração. Racismo é um tema que me toca profundamente (e deveria sensibilizar todo mundo, mas, infelizmente, tem gente que não está nem aí), mas presenciar ou ouvir relatos de crianças/adolescentes vítimas de racismo é algo que me abala profundamente, mesmo se tratando de ficção (mas que a autora no posfácio conta ter sido a história baseada numa vivência sua de infância) .
Toni Morrison, contudo, faz desse tema algo que sim nos emociona e em uma certa medida entristece, mas também nos instiga a questionar aquela realidade e não só encará-la com pena.
É preciso saber que crianças negras são constantemente violentadas (sexual, física, psicológica e, sobretudo, emocionalmente) na sociedade em que vivemos. Crianças pretas recebem menos carinho, menos educação, menos cuidado e menos amor se compararmos com aquelas que possuem os olhos mais azuis. Isso é um dado. É uma realidade.
Quando iniciei minha jornada de letramento racial, contando com o apoio e orientação de minha amiga Lorena Lacerda, uma das coisas que primeiro me atentei foi à situação de extrema vulnerabilidade que crianças negras se encontram numa sociedade racista como a nossa e o quanto nós adultos devemos ser cuidadosos com a integridade dessas pessoas que ainda estão em desenvolvimento.
A gente precisa se conscientizar de que somos responsáveis por preservar a inteireza dessas crianças para que elas não se fragmentem na busca de um azul inexistente, um azul que não há.
E para que cada olhinho ganhe um brilho definido.
Vale a leitura de cada palavra de Toni Morrison.
.escrevo, assim, minhas palavras.
Leitura conjunta
Junto com O olho mais azul, li também A cor púrpura, de Alice Walker, inclusive até comentei no texto da semana passada.
Diferente de Morrison, Alice dá um tom mais cômico na narrativa. Os temas abordados são os mesmos (racismo nos EUA e crianças negras sendo as protagonistas das violências ora relatadas, ou seja, pesadíssimos), mas em A cor púrpura o foco fica nas relações travadas entre as personagens mulheres e como elas se fortalecem e se protegem das dinâmicas racistas e machistas no contexto em que estão inseridas.
É outro livro lindo e que todo mundo deveria ler.
Quando finalizei a leitura mandei mensagem para vários amigos e comentei com toda e qualquer pessoas que surgia na minha frente, recomendando e até colocando a minha edição à disposição para quem quisesse emprestado (sou mais ou menos tranquila quanto a isso, pois meu ex libris desaforado está carimbado em todos os meus livros, o que talvez garanta a devolução).
Por fim, estou feliz também porque com a leitura desses dois títulos fiquei em dia com o Desafio Leia Mulheres (com algumas adaptações, mas seguindo os temas propostos para cada mês). Agora é me organizar e achar o que ler em outubro (“um livro publicado antes de 1900”). Se você que está lendo tiver uma sugestão para dar dentro da proposta do mês, deixa nos comentários, por favor!
Próximos!
No sábado tirei da estante 3 (!!) livros que pretendo ler em outubro, fora o desafio (que conto com a ajuda dessa linda audiência para escolher algo legal).
Sim, 3 livros. Desde o ano passado resolvi me aventurar nas leituras conjuntas, mas até então eram apenas dois livros por vez. Separei dessa vez 3 porque entendi que de alguma forma conversavam entre si, sendo dois mais curtos(apesar dos temas bem densos), o que me fez acreditar ser possível (“não sabendo que era impossível foi lá e soube” ou “leia enquanto eles dormem”, frases, inclusive, que dialogam muito bem com os títulos escolhidos).
Eis o big three:
A metamorfose, De Franz Kafka. Na verdade é uma releitura, instigada pelo meu amigo Caio Lima, que também está lendo o livro e outras obras de Kafka. Vem coisa boa aí no Rede Poderosa, será? Se você ainda não conhece Paty e Caio, vale acompanhar o podcast e as demais redes em que eles estão produzindo conteúdo. A minha preferida é o Youtube, com as tags literárias mais divertidas da web. Só vai! Pois bem, A metamorfose é a história do caixeiro-viajante Gregor Samsa que, um belo dia (nem tão belo assim, né?), acorda de sonhos intranquilos transformado numa enorme barata. A graça está no desenrolar da história e na angústia marota que só o menino Kafka é capaz de entregar para nós.
24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, de Jonathan Crary. Nem sei o que dizer, só sentir. É muita informação para a gente digerir sobre a tendência neoliberal de privação de sono (e perceber o quanto estamos enfiados até o pescoço nesse estilo de vida enlouquecedor que está sendo imposto a todos nós).
Para fechar a trinca sobre dormir, sonhar e acordar (ou não), O oráculo da noite, A história e a ciência do sonho, de Sidarta Ribeiro. Sidarta é neurocientista (e meu crush) e nesse livro apresenta para o leitor sua pesquisa sobre o papel do sonho na história da humanidade e a visão científica sobre o aspecto onírico do sono. Brincadeiras a parte (mesmo que eu tenha falado sério), procuro sempre estar atenta e acompanhando as pesquisas que Sidarta desenvolve, especialmente sobre o tema desse livro e também sobre uso medicinal da cannabis e dos psicodélicos.
Acho que é isso.
Temos uma publicação?
Que ótimas sugestões! Eu tô numa fase do romance, não necessariamente romântico, mas um pouco mais leve por agora. Li reino transcendente e me apaixonei! Vai virar minha nova recomendação pra todo mundo. Ainda não li kafka, tem um aqui na minha estante mas ainda n tô no momento. Tá do lado de “admirável mundo novo” que já tentei ler duas vezes e parei nas primeiras páginas kkkk quem sabe em outro momento. Livros tem dessa né? Bjs!
Kafka me mexe bastante, é bem visceral, já li o processo e a metamorfose. E o do Sidarta é ótimo também. ♥️