No feriado (dia 2 de novembro), lembrei do projeto inicial que tinha pensado para esta newsletter, o de procurar lugares legais na minha cidade onde pudesse ler tranquilamente (e com segurança). Fiz somente uma edição (uma das primeiras) e depois percebi que minha preguiça era maior que a vontade de desbravar Salvador à procura de um lugar que não tivesse ninguém gritando ou puxando assunto aleatório com você (numa clara intenção de frete).
Pois bem, no Dia de Finados resolvi assistir Retratos Fantasmas, do diretor Kleber Mendonça Filho, em um cinema de rua aqui de Salvador (considero cinema de rua todo aquele que fica fora de shoppings centers. esse que fui fica dentro de um Museu, fazendo parte do projeto Cinema Sala de Arte).
13:40h estava ainda em casa me arrumando. Quando fui confirmar o horário da sessão, que na minha cabeça seria às 14:30h, tomei um susto com a informação de que o filme na verdade começaria dali a 20 minutos.
Corri atrás do meu celular para pedir um uber e, enquanto o aplicativo ficava ali procurando um motorista (quando estou com pressa sempre demora), fui calçar sapato, tirar os nós do cabelo com os dedos, passar protetor solar e um blushzinho para não ficar com cara de morta (opa, era dia 2 de novembro), trocar de bolsa e jogar um livro dentro dela (escrevendo isso agora percebo que a demora do app foi até providencial).
Mas deu tudo certo. Cheguei a tempo de comprar o ingresso e entrar na sala antes mesmo de as luzes se apagarem.
Inclusive, fui a primeira a chegar. A sessão estava até "cheia", contando com a minha presença e de mais umas 5 pessoas. Digo isso porque já fui nesse mesmo cinema para ter só eu dentro da sala assistindo o filme (o filme de Beth Carvalho. Recomendo).
Depois do filme, que achei lindo, uma declaração de amor à cidade e aos cinemas de rua de Recife, fui dar uma volta no Museu. Vi as exposições e depois sentei um pouco para ver o mar (fui no MAM, que fica em um Solar na beira da Baía de Todos os Santos. Se você nunca foi, vá. Se você não é daqui e vier à Bahia, em Salvador, é uma visita que tem que estar dentro do seu passeio de turista pela cidade). Já trabalhei no museu e é sempre uma alegria estar de volta aquele espaço.
Antes de tomar meu rumo por salcity (estava com espírito andarilho nesse dia), fui à cantina (veio essa palavra na minha cabeça e achei melhor do que usar cafeteria) para comer alguma coisa gostosinha. Pensei em puxar meu livro e ler um capítulo enquanto macetava um mini-banoffee e uma quiche de tomate seco, mas preferi ficar olhando a vida dos outros. Casais, crianças, senhoras e turistas. Alguns jovens tentando disfarçar a indisfarçável introspecção mística após contato com substâncias psicoativas, entre outras situações boas de se contemplar.
Depois de sair do MAM, parei num mirante já mais perto de minha casa para esperar o por do sol.
Enquanto o sol não descia, resolvi ler um pouco e, apesar de ter um gringo jogando futebol com o filho, um bebê chorando, um casal brigando, cachorros latindo e correndo atrás de um gato velho, a leitura fluiu que foi uma beleza.
Estou lendo "Por que escrevo", de George Orwell, livro que reúne alguns ensaios do autor sobre a arte da escrita, sua experiência e impressões como escritor e o papel político da literatura.
O capítulo/ensaio chamado "Política e a língua inglesa" me rendeu boas risadas, pois me fez lembrar de uma ferramenta muito utilizada pelos estudantes de Direito na minha época de faculdade (lá pelos anos de 2008/2009): O Fabuloso Gerador de Lero-Lero.
Pelo amor de Deus, alguém me diz que já viu/usou esse site. Eu joguei aqui no Google e os resultados me deixaram um pouco na dúvida porque a memória pós-covid não tem ajudado muito, mas achei esse aqui um pouco familiar.
Deixa eu explicar do que se trata: é um site em que o usuário coloca um tema e o programa apresenta um texto pronto, que não fala nada com nada (o título e o primeiro parágrafo fazem menção ao assunto escolhido e só, o resto é pura encheção de linguiça com termos e frases prontas). É um antepassado do ChatGPT, só que sem compromisso nenhum com o mínimo de sentido e coerência.
“O Fabuloso Gerador de Lero-lero v2.0 é capaz de gerar qualquer quantidade de texto vazio e prolixo, ideal para engrossar uma tese de mestrado, impressionar seu chefe ou preparar discursos capazes de curar a insônia da platéia. Basta informar um título pomposo qualquer (nos moldes do que está sugerido aí embaixo) e a quantidade de frases desejada. Voilá! Em dois nano-segundos você terá um texto - ou mesmo um livro inteiro - pronto para impressão. Ou, se preferir, faça copy/paste para um editor de texto para formatá-lo mais sofisticadamente. Lembre-se: aparência é tudo, conteúdo é nada.”
O programa apresenta um amontoado do que Orwell chama de "expressões gastas".
“Assim que certos temas são abordados, o concreto se dissolve no abstrato e ninguém parece ser capaz de recorrer a expressões que não sejam gastas: a prosa consiste cada vez menos em palavras escolhidas pelo que significam, e cada vez mais em frases engatadas umas nas outras como os módulos de um galinheiro pré-fabricado”
“(…) a escrita moderna, em seus piores momentos, não consiste em selecionar palavras por seus significados e inventar imagens a fim de tornar mais claro o que se pretende dizer. Consiste em colar umas às outras longas tirar de palavras que já foram ordenadas por alguém, e tornar o resultado apresentável graças a pura enganação. É mais fácil - e até mais rápido, depois que você se acostuma, - dizer A meu ver, não é uma suposição injustificável afirmar que do que simplesmente dizer Acho que”
Às vezes me pego pensando se não utilizo desse tipo de escrita aqui na newsletter. Tento ser o mais direta e clara e simples, mas provavelmente deve sair alguma coisa obscura vez ou outra.
Já falei em outra ocasião (e vou voltar a falar em outros momentos. certeza. Freud explica) sobre minha mãe. Ela era professora de português e sempre me orientava a praticar uma linguagem inteligível (ela dizia que era um sinal de inteligência dizer de forma simples o que se quer comunicar). E aí que lendo esse ensaio de Orwell identifiquei uma coisa que ela sempre repetia, quase que usando as mesmas palavras dele (talvez ela tenha lido o ensaio): falar o bom português tem menos a ver com o emprego correto das regras gramaticais e mais com se fazer entender por quem esteja te ouvindo (qualquer que seja essa pessoa e seu grau de instrução).
“Nada tem a ver com gramática ou sintaxe corretas, que não têm importância desde que se diga claramente o que se quer dizer.
“É preciso deixar que o sentido determine a palavra, e não o contrário. Na prosa, o pior que podemos fazer com as palavras é nos sujeitarmos a elas.”
Ela falava, ainda, que se a função da linguagem é estabelecer laços entre pessoas. Quando a gente escolhe um vocabulário que dificulta a compreensão do sentido do nosso texto pelo ouvinte/leitor, de nada vale a comunicação que se tenta travar, a tentativa de diálogo é ilógica, pois estamos deliberadamente optando não firmar um elo com aquela outra pessoa. A gente falha como ser humano (sim, ela falava umas coisas pesadas para crianças em processo de aprendizado. sim, trato isso na terapia).
Me esforço em escrever para ser compreendida, para estabelecer conexões com outras pessoas, para ouvi-las e compreendê-las também. Também utilizo esse momento de escrita para me conectar comigo, o teclado servindo muitas vezes de espelho, me fazendo ver, falar e ouvir de forma mais límpida a minha própria caminhada. Esta newsletter tem sido um espaço feliz para praticar minha humanidade. É bom estar aqui.
.escrevo, assim, minhas palavras
Leituras
Ainda sobre minha mãe, quando eu era pequena ela costumava contar várias histórias adaptadas de clássicos da literatura, de um jeito que era possível uma criança entender os sentidos por trás de cada uma delas.
Semana passada iniciei Fahrenheit 451 e a ideia de que cada leitor carrega dentro de si os livros que leu durante a vida me fez lembrar muito de minha mãe contando as histórias que lia para mim.
Fahrenheit 451 é uma distopia/ficção especulativa que se passa numa sociedade em que possuir livros se tornou um ato criminoso, passível de destruição imediata por meio do fogo, ficando a execução da pena a cargo do corpo de bombeiros, numa completa inversão da antiga função social que essa instituição desempenhava.
O título do livro faz referência à temperatura em que o papel entra em combustão (451 Fahrenheit. convertendo para Celsius, 233º). Ray Bradbury chegou a essa informação fazendo uma rápida ligação ao batalhão de bombeiros de sua cidade.
No decorrer da história, a gente descobre que há um grupo de pessoas que resistem a essa censura e autoritarismo impostos. E a forma que esse grupo de pessoas resiste à repressão é guardando os livros e ideias dos autores nas suas memórias e passando adiante através da oralidade. Cada pessoa se transforma em uma obra ou autor e repassa aquilo que sabe, perpetuando o conhecimento através de seu compartilhamento.
Resistir é guardar consigo histórias e passá-las aos mais novos a partir da fala, salvando, assim, uma cultura ameaçada de extinção. Dessa forma também se deu a resistência cultural entre as populações de escravizados aqui no Brasil.
”alguns livros existem entre capas que têm forma perfeita de pessoas”
Minha mãe era isso, um livro em forma de pessoa.
Muitas das histórias que fui ler depois da sua morte eu já conhecia (e a reconhecia em cada uma delas). Algumas eu nem precisaria ter lido, na verdade, porque ela contava com tanta riqueza de detalhes que encarei mais como uma releitura da obra.
A que eu mais tenho viva na minha memória é o conto de Gogol, O Capote. Para mim sempre será uma história triste, sobre pobreza extrema, mas com pitadas de humor, que ela acrescia na narrativa para deixar a história mais leve para uma criança pequena.
Cem anos de solidão, O Alienista, Demian, Fernão Capelo Gaivota…todos eles “reli” por indicação dela (talvez ela tivesse receio de que um dia as previsões de Ray Bradbury viessem a se realizar. um medo real, já que ela também viveu a censura imposta pela Ditadura Militar brasileira) e continuo relendo hoje quando quero lembrar daquelas histórias contadas através da memória de minha mãe.
Li, ainda, Paixão Simples, de Ernaux, e foi numa sentada, de manhã cedo. São 60 páginas (ou mais um pouquinho) sobre parte da vida da narradora em que ela passou aficionada por um homem.
Me identifiquei em vários momentos, porque já estive nesse lugar de viver em suspensão até o momento em que estaria novamente ao lado da pessoa amada, fazendo mil planos de quando estivéssemos juntos novamente (a velha e triste dependência emocional). É uma grande merda se sentir assim, como se houvesse um buraco enorme dentro do nosso peito por conta da ausência (não só física) da pessoa.
Lendo e pensando nas minhas histórias de amores mal amados, me lembrei muito de uma música de Lenine, que conheci na voz de Daniela Mercury, chamada Meu Plano.
“Largo os compromissos deixo tudo ao largo
Você tenta em vão me convencer
Que é melhor não fazer planos pra você”
Essa música é uma pedrada para quem se apaixonou e o sentimento, infelizmente, não era recíproco. É uma das piores dores do mundo, sem dúvidas.
Quando finalizei a leitura até senti falta de não estar vivendo um romance (claro que numa dinâmica de relação mais saudável do que a autora conta no livro. sem dor. sem planos unilaterais).
Queria, não vou mentir.
Uma paixão simples e feliz.
Acho que é isso.
Temos uma publicação?
Vi o doc do Kleber ontem também e me doeu a saudade do quanto eu amava os cinemas de rua, meu lero-lero dessa semana vai falar disso. ♥️
que linda essa edição, Luli 💜
eu adorei conhecer o Solar do MAM da última vez que estive em Salvador, teu passeio inteiro pareceu tão gostosinho. também vi esse documentário num cinema de rua, mas foi numa sessão lotada. o lugar chama Cine Passeio. e o que eu queria dizer mesmo é que ficou muito bom esse jeito que você falou da sua leitura no texto. tenho muita vontade de ler esse livro de ensaios, só que tinha a impressão de que poderia ser um pouco chato. sua opinião me fez mudar de ideia.