Fevereiro chega a seu fim e nesses dois primeiros meses do ano de 2024 a morte veio permear o meu universo de colecionismo de vinil. Isso porque dois grandes vendedores faleceram. Um era bem conhecido nas rodas de colecionadores. Já o outro era um colecionador que vendia esporadicamente discos de sua coleção para complementar a renda familiar.
Sobre esse último, ele acabou se tornando uma pessoa querida, apesar do pouco tempo em que mantivemos contato. Meu primeiro contato com Adriano foi por intermédio de uma amiga, que viu anúncios dele em alguma plataforma de compra e venda, mas estava um pouco constrangida de iniciar negociação na tentativa de baixar os valores dos discos. Como já contei aqui, adoro negociar e pechinchar (lembrando sempre que isso não significa precificar produtos e serviços dos outros e nem baixar o valor a ponto de desvalorizar a mercadoria. é uma diferença que guarda certa sutileza. “só para os loucos…só para os raros”).
Pois bem, recordo que iniciei a conversa me apresentando, listando os discos que minha amiga tinha interesse e outros que eu gostaria também de adicionar à minha coleção. Nisso, ele foi me mostrando os discos que tinha, para além daqueles postados no anúncio. Dentre esses, um foi o The Dark Side of the Moon, da banda Pink Floyd, que eu sonhava ter, mas que até então não tivera oportunidade ($$$$). Lembro que mandou também fotos de um de Bob Dylan e prometeu mandar outras do que ele tinha em casa.
Sei que em um certo momento, a conversa fluiu de tal maneira que começamos a trocar áudio sobre nossos gostos musicais, em especial por Pink Floyd. Falei para ele que, apesar de gostar muito, tinha poucos discos da banda, pois era difícil achar em boas condições e num preço acessível (sim, disco de rock é caro. pelo menos para mim. por isso, tenho poucos na minha coleção). E foi então, compadecido da minha situação de fã desafortunada, que ele me prometeu alguns discos da banda por preços exequíveis. Eu tinha só que aguardá-lo chegar em casa para me mostrar os títulos que tinha em duplicidade e que fazia questão de disponibilizar para mim.
A melhor parte dessa história foi que cada disco saiu por valores praticamente simbólicos e ele ainda parcelou o montante, de boca (no caso, áudio por whatsapp), me dizendo para pagar quando eu achasse melhor e nos valores que eu quisesse.
Falei montante, o que pode parecer que foi um valor alto, ainda mais com as suaves condições de pagamento, mas o valor total dos discos que acabei levando não chegou a 1% do que pagaria fechando negócio com outros vendedores. Adriano, realmente, era uma pessoa diferenciada e estava naquele rolé por amor à história da música documentada em formato de LP. E antes disso tudo, dos valores mais baixos que o comumente praticado em mercado, já era possível identificar esse proceder nele, talvez por essa razão a conversa fluiu tanto até o ponto de compartilharmos nossos gostos musicais e detalhes sobre a coleção pessoal de cada um.
Adriano, diferente de grande parte dos vendedores de disco (e, sim, tem um gênero incluso na generalização que faço aqui. são vendedores homens, em sua maioria, e não mulheres), se guiou por outros fins que não apenas querer ganhar dinheiro (muito dinheiro), subestimando uma colecionadora.
Mas esse papo de gênero e machismo na cena do vinil fica para uma outra oportunidade, aqui quero exaltar a história de boas trocas, que começou no início de fevereiro de 2022 e, infelizmente, teve seu fim na virada de 2024, quando soube do falecimento de Adriano, decorrente de um mal súbito. Me tocou bastante o fato dele ser jovem, mais ou menos da minha idade, e ter dois filhos ainda pequenos (lembro, inclusive, que as vendas que fechamos foram realizadas com o intuito de arrecadar fundos para o nascimento de sua filha caçula).
E essa história toda é para dizer o por que coleciono disco. Para além do valor de mercado dos itens (acho surreal alguns preços que vejo sendo praticados por aí), adquiro os meus vinis por uma questão de apreço à arte (a que me agrada) e à documentação da cultura que eles representam. Disco é, acima de tudo, cultura e documento histórico, que retrata arte, estética e política de uma determinada época.
Talvez por isso me irrite tanto ver a redução que fazem tantos vendedores e colecionadores, que colocam preço e zero valor nesses bens. Em detrimento de qualquer troca humana, constroem barreiras monetárias entre as pessoas.
Há pouco mais de duas semanas faleceu um outro vendedor de disco. Esse, como disse lá em cima, era bem conhecido no mundo dos colecionadores, sendo referência na venda de raridades.
Pois bem, no anúncio de seu falecimento em um grupo de whatsapp, à revelia de qualquer sentimento de humanidade e elegância, iniciou-se uma discussão acerca dos preços praticados pelo de cujus, com direito a comentários do tipo “ele era bem pilantra, mas não merecia isso”. Alguém, que a princípio julguei de bom senso, respondeu: “Maluco faleceu e você tem a audácia de chamar o cara de pilantra. Tu é otário pra caralho”. Digo que tive um julgamento precipitado acerca dessa pessoa que respondeu, pois logo em seguida esse dois seres humanos começaram a trocar insultos de baixo calão, inclusive marcando local, data e horário para saírem na mão. E isso tudo se deu por ambos os brigões (e a maioria dos membros do grupo que, presenciando o escalar da coisa, permaneceu quieta) estarem enterrados nessa lógica de mercado, que super valoriza coisas em prejuízo de um senso mínimo de humanidade.
Acredito muito que não existe espaço que escape de debates políticos. Alguns até tentam, principalmente nesse universo de colecionador (sim, querem tratar arte e música como lugar neutro). Vender e comprar também é político, assim como colecionismo é. Gosto de acreditar que certas pessoas vivem num mundo descolado da realidade, em um Bambuluá dos LPS. Digo que prefiro assim crer, pois se não for isso teremos que aceitar a ideia de um mal que tem um poder imenso de destruição humana.
A morte de dois vendedores, a generosidade de um, discussões desrespeitosas no dia do velório de outro, tudo isso é sobre compra e venda de disco e, consequentemente, política.
É por política que tenho meus discos (meus livros).
. escrevo, assim, minhas palavras.
In Memoriam::
Adriano e Erito.
Esse daqui me pegou, viu? Que texto lindo! In memoriam 🖤
Ah que pena…
Que homenagem bonita… Despretensiosa e sensível como são seus textos.
Bonita a forma como você transita pelas relações que (parecem) superficiais.
Obrigada pelo texto!
Até breve.