A problematização da categorização de música/literatura em boa e ruim é um tema que parece batido e até superado. Mas volta e meia me atento a alguns comentários jocosos nas redes sociais ou até análises despretensiosas de mesa de bar e penso ser ainda necessária a discussão do tema de forma séria e honesta, com as devidas implicações das partes.
Estamos cansados de saber (às vezes me parece que não) que essas classificações partem de uma incapacidade de romper com as barreiras existentes em decorrência de questões de classe, raça e gênero. Nisso somos levados a acreditar que bom é o que o nosso grupo social avalia de forma positiva e tudo aquilo que nos é estranho vai para a sacolinha do que não presta.
No início do mês foram divulgadas as atrações do festival Afropunk Bahia, a ocorrer em novembro deste ano. Mesmo fora das redes, fiquei sabendo (já imaginava mesmo antes de receber as notícias de minhas amigas) que as pessoas estavam questionando as escolhas de alguns artistas para essa edição e sugerindo que o evento “não era mais o mesmo” ou que as bases do mesmo estavam sendo “desvirtuadas”.
Para quem não conhece, o Afropunk surgiu como um movimento cultural de afirmação da participação de pessoas pretas em subculturas como o punk, rock e alternativas, nas quais é possível perceber um protagonismo branco, muito por conta de uma velha conhecida, a apropriação cultural. O Afropunk, então, foi uma forma dessas pessoas usurpadas de suas próprias criações se mostrarem como parte e agentes daquelas cenas.
Ao contrário do que algumas queixas insinuavam, os artistas escolhidos são todos pretos1, com público em sua maioria preto e produzindo música de preto, o que em nada desvirtua a essência do festival.
Vou colocar aqui embaixo a grade de atrações que deu o que falar para vocês analisarem e me responderem honestamente o que acharam. Na verdade, não precisam me dizer nada, pois mais importante é elaborar internamente o estranhamento que eventualmente surgir (que eu sei que vai rolar. nem tente se enganar).
As atrações que trouxeram maior desagrado ao público (branco, diga-se de passagem) que frequenta o festival foram: Léo Santana e Silvanno Salles.
Muita gente manifestou sua insatisfação seguida da defesa prévia de que era porque o line-up continha artistas completamente desconhecidos.
Fiquei pensando na impossibilidade de estarem mesmo se referindo a Léo Santana. Um homem daquele tamanho é complicado não perceber a existência, né? Em que mundo essas pessoas vivem que não conhecem Léo Santana? Sinceramente, eu não consigo compreender. Conhecer Tim Bernardes, aquele grandessíssimo picolé de chuchu, e desconhecer Léo? Que vida triste e mais sem sentido, viu? Misericórdia!
E sobre Silvanno Salles, as pessoas têm que aprender a falar por elas e não envolver mais ninguém nas suas suposições infundadas. Veja bem, onde moro todo aquele que tem o mínimo de respeito a si próprio sabe quem é o artista. É impossível viver na Bahia e não saber quem ele é e a sua importância para o meio artístico.
Sim, Silvanno Salles é um cantor que recorrentemente, através de suas versões de arrocha, faz estourar músicas e artista até então desconhecidos do público baiano ou que estavam no ostracismo. Ou seja, se você é artista de fora e quer fazer sucesso na Bahia (e se sua música tem um teor romântico), tenta negociar com o homem uma versão. Aposto que vai ser sucesso, como tudo que ele se propõe a gravar.
Fora que o argumento de não saber de quem se trata não mais se sustenta depois que o mesmo foi citado em um programa da rede aberta de TV e Will Smith ter postado uma foto no Instagram com trilha sonora do cantor.
Com isso, fica evidente que o descontentamento surge muito por conta do público popular que os referidos artistas trazem consigo e que “invadiria” um ambiente que até então era frequentado por “pessoas selecionadas”.
“Somos barrados no baile
Somos barrados no baile
Eles dizem: É só para gente bonita”
(Edson Gomes, Barrados no Baile)
Sim, e esse pensamento se faz presente até nos meios mais progressistas, obviamente que de uma forma sútil e velada:
“Veja bem, não é pelo público (preto e periférico), até porque mais antirracista do que eu não há, mas sim pelo artista que não canta música de qualidade.”
“Frequento o festival desde a primeira edição e me parece que a qualidade vem caindo a cada ano”
Não vou mentir que nunca pensei dessa forma, mas como a gente veio nessa vida para passar vergonha e evoluir, melhorei nesse aspecto. No auge dos meus 14/15 anos, após uma leitura superficial e equivocadíssima de O Lobo da Estepe,de Hermann Hesse, eu abria a boca na maior confiança para lançar ao vento atrocidades em defesa da boa literatura e boa música, no melhor estilo “só para os raros, só para loucos”.
Com o tempo, percebi que quem me acompanhava nesse tipo de pensamento eram pessoas muito distantes de mim quanto à raça, classe e gênero. Homens brancos e ricos colocando na cabeça de uma adolescente não-branca, classe média baixa e nordestina o que ela deveria ler e ouvir para tentar fazer parte daquele seleto grupinho e se afastar do popular.
Hoje, gosto de chamar essa forma de pensar de “cultura do camarote”. Para ser bom, tem que ser reservado para um grupo diminuto de pessoas, os escolhidos, os poucos e bons, que tiveram acesso ao que há de melhor e sabem identificar as coisas boas da vida, na contramão de grande parte da população, uns pobres coitados ignorantes e de mau gosto.
Arte, lugar, roupa, para todos, essa lógica se encaixa e, o mais intrigante, é que enquanto permanecem como inacessíveis para boa parte das pessoas, justamente pelo alto custo agregado (monetário, de tempo, disposição, etc), eles são benquistos pelos “reis do camarote”. Quando de alguma forma há uma popularização, amplo acesso, passa a não prestar mais.
O Afropunk não presta mais para essa turma. Não agrega mais valor.
E isso para mim só tem um nome: racismo. Ia falar de elitismo também, mas acho que o racismo já abarca essa questão.
É sobre a constante pressão em manter multidões pretas em seus devidos lugares. É sobre até aceitar um festival com afro no nome, mas com atrações que tenham o aval da branquitude. Quando esse controle escapa, a coisa já não presta mais.
Acontece no mundo dos discos e livros. Na literatura, a gente costuma ver as pessoas se lamentando pelo fato de grande parte da população não possuir o hábito de leitura, mas na primeira oportunidade de ver a coisa se popularizar ou acessar as massas (pretas e pobres), começamos a ouvir discursos extremamente violentos, disfarçados de defesa da boa cultura.
E é tanta regra sugerida para ser um bom leitor, um bom colecionador ou apreciador da boa música, que realmente são poucos os “escolhidos” para fazer parte desse seleto grupo de seres humanos tão iluminados.
E a gente sabe que raro e louco só é possível sendo branco e rico.
escrevo, assim, minhas palavras.
Meus livros e discos e outras coisas a mais
Esse tempo sem escrever por aqui também foi um período de poucas leituras.
Em julho, ensaiei ler alguns livros, mas só um, no finalzinho do mês, embalou num ritmo que acredito vai me levar a finalizá-lo em breve.
entre sessões, do psicanalista, pesquisador, podcaster e monte de coisa boa a mais, Lucas Liedke. A forma que ele explica a ideia de análise, os papéis do analisando e analista torna muito mais fácil e possível o entendimento da teoria psicanalítica. Acessível, maravilhoso, feito para as massas.
No mais, tenho assistido e gostado bastante da série The Bear. Depois de ver tanta indicação aqui no substack e às vésperas do lançamento de uma nova temporada, resolvi maratonar os episódios das primeira e segunda temporadas em dois finais de semana.
Para finalizar deixo a indicação de ouvir uma banda que adoro e tive a felicidade de ir em um show esse mês, Paralamas do Sucesso. Que espetáculo bom, viu?
Acho que é isso.
Temos uma publicação?
Utilizo a expressão para designar pessoas indisfarçavelmente pretas, que sofrem racismo pelas suas características físicas. Quem é sabe e quem não é sabe também.
Rapaz.. Me pergunto como tem gente que tem a coragem de reclamar dessas atrações? Como eu queria estar na Bahia nessa data só pra ver a Duquesa e a melly (São as duas artistas que mais tenho escutado no momento) agora vai uma reflexão que talvez seja um pouco descabida mas aí vai : Será que se uma Luísa Sonza fosse anunciada como atração do afropunk, esse mesmo público iria reclamar? Já que mesmo com o caso de racismo nas costas, ela ainda continua sendo abraçada pelo rap e alguns da comunidade preta? Eu tenho minhas duvidas, viu...
Ótimo texto Lud! ❤️
nossa li aqui teu texto e lembrei de um entrevista da Roberta Martinelli com a Mãeana que elas falam sobre como uma galera diz que ouve João Gomes na versão dela mas que não curte o som dele porque é muito popular, não chegando nessa galera que se coloca em um pedestal