Voltei. Ainda não 100%, mas me sentindo um pouco melhor para estar aqui escrevendo.
Engraçado que o impulso vem de uma obra que há dois dias iniciei a leitura. Na verdade, é um pouco estranho, pois o tema central do livro é o processo de luto pela morte de pessoas próximas.
Joan Didion, em seu livro O ano do pensamento mágico, traz um relato essencialmente verdadeiro sobre a experiência de perder um ente querido. Enquanto leio, recordo a morte de minha mãe. Identifico agora, após 18 anos, os sentimentos que a autora traduz em palavras com aqueles que senti à época: o frio diante da notícia derradeira mesmo tendo a minha frente o pôr do sol de verão mais intenso e lindo que já vi; a crença, mesmo racionalizando tudo, do seu retorno; a sensação de completa mudança da vida após aquele único instante em que tudo aconteceu; o medo de esquecer e a certeza de que com o tempo, de fato, a memória borra nossas melhores lembranças.
Curioso, porque semana passada, lendo e pensando sobre o mesmo tema, acompanhando as notícias do Sul, me sensibilizei ao ponto de não conseguir agir, ficar completamente sem reação diante da morte de centenas de pessoas, mesmo que fosse para apenas emitir uma opinião raivosa contra os responsáveis pela tragédia. Nada saía.
Agora, diante de um livro que rememora um fato tão sensível para mim, tão mais próximo, eu consegui reunir concentração e escrever sobre. Estranho. Mas faz sentido. Me sinto à vontade de falar de algo que vivi, passei, sofri na pele. Apesar de imaginar todo o horror vivido pelas pessoas do Rio Grande do Sul, eu não consigo me colocar naquele lugar e falar do ponto de vista de quem sabe o que tudo aquilo representa. Eu não sei. Eu não me sinto capacitada para falar e me posicionar como uma pessoa que passou e tem passado por aquilo tudo (a não ser xingar, xingar muito os governantes daquele local, porque em relação a descaso estatal todos nós brasileiros nos identificamos). Sinto, inclusive, que me colocar naquele lugar é injusto, pois eu nunca poderia passar por aquilo sendo quem eu sou, estando onde estou, tendo a vida que tenho.
Outras tragédias, sim, podem me ocorrer. Aquela não. Então, quanto aos pormenores das enchentes e alagamentos, prefiro sentir e silenciar. Ajudar como posso, refletir sobre meus privilégios e as possibilidades de ser ou não afetada por um desastre, realizar doações respeitando minhas condições e pensar em como agir daqui para frente, a fim de mitigar o fim do mundo que virá para cada um de nós uma hora ou outra (de uma forma ou outra), tentando evitar, ao máximo, os horrores da ansiedade climática.
Agir.
Até aquele momento, eu me permitira apenas sofrer, não ficar de luto. O sofrimento é passivo. O sofrimento acontece. O luto, o ato de lidar com o sofrimento, exige atenção.
Joan Didion, O Ano do Pensamento Mágico.
Essa semana, li os textos de Alex Castro (que andava sumido) sobre empatia e achei muito interessante a forma como ele trata o assunto. Concordo quando diz que somente empatia não basta, faltando a muitos que se colocam como pessoas empáticas a ação eficiente diante do sofrimento do outro. Fiquei pensando se meu silêncio me colocava nesse grupo de empatia tóxica que só afaga o próprio ego, mas acho que não me encaixo nisso. Até porque já pensava sobre isso, só não tinha capacidade de organizar direitinho as ideias como ele fez na Prisão Empatia.
Tudo começou numa entrevista que assisti com a atriz Taís Araujo, em que ela defendia não a empatia, mas a alteridade. Desde então, passei a achar mais condizente com meus valores e a fazer uso da palavra/sentimento alteridade.
Em resumo, alteridade é a ideia da gente até poder se colocar no lugar do outro, mas entendendo que as experiências não podem ser as mesmas.
A palavra alteridade advém do vocábulo latino alteritas, que significa ser o outro, portanto, designa o exercício de colocar-se no lugar do outro, de perceber o outro como uma pessoa singular e subjetiva.
Pesquisa no Google.
O outro é o outro. Não somos iguais. Quando eu entendo que aquele sofrimento do outro não é meu e que eu não poderia sentir na pele tudo aquilo, acredito que seja mais fácil a ação efetiva de mudança, seja interna ou externa.
Entender as diferenças e respeitá-las é fundamental para viver de forma mais harmônica em sociedade. E a partir desse olhar ao outro, sabendo que ele é diferente, conseguimos ter plena consciência de quem somos, o que representamos socialmente. Com o olhar da alteridade conseguimos enxergar eventuais privilégios que tenhamos e compreender o impacto deles no outro.
Transgredir.
"A necessidade de transgredir
O rabi Elimelech certa vez perguntou a seus discípulos: “Sabem qual é a distância entre o Ocidente e o Oriente?” Diante do silêncio, o rabino prosseguiu: “Uma simples volta”.
Transgredir é um processo, e o momento em que nos voltamos para outra direção marca um novo segmento de nossas histórias individuais e coletivas. O corpo e sua moral, por sua vez, percebem esse ato como uma “desorientação”. No entanto, transgredir é necessário.
O rabi Bunan adverte que os “pecados” que um indivíduo comete não são o pior crime realizado por ele. O verdadeiro crime do ser humano é que ele pode dar-se “uma simples volta” a qualquer momento, mas não o faz.
Para o rabi Bunan, o problema não é o tempo perdido ou as sandices cometidas no passado, mas o momento de agora, que é uma oportunidade não aproveitada para mudar o curso. Duas coisas ficam comprometidas pela ausência de transgressão: a qualidade da vida e a possibilidade de continuidade.
A qualidade da vida coletiva é prejudicada cada vez que um indivíduo não exerce todo seu potencial transgressivo. A vida poderia ser melhor, produzir maior satisfação, mas os indivíduos se abstém de seus direitos e com isso afetam o direito de todos.
Conta-se que um homem rico veio certa vez ao maguid de Kosnitz.
“O que você costuma comer?”, perguntou o maguid. “Sou bastante modesto em minhas demandas”, disse o homem rico. “Pão, sal e água é tudo o que necessito.”
“O que você pensa que está fazendo?”, o rabino reagiu em reprovação. “Deve comer carne e beber vinho como uma pessoa rica.”
Mais tarde, seus discípulos questionaram a reação do mestre, e este explicou: “Até que ele coma carne e beba vinho, não vai compreender que o homem pobre precisa de pão. Enquanto ele se alimentar de pão, vai achar que o pobre pode se alimentar de pedras.”
Aquele que não faz uso de todo o potencial de sua vida, de alguma maneira diminui o potencial de todos os demais. Se fôssemos todos mais corajosos e temêssemos menos a possibilidade de sermos perversos, este seria um mundo de menos interdições necessárias e de melhor qualidade.
Nilton Bonder, Alma Imoral.
escrevo, assim, minhas palavras.
Meus livros e discos e outras coisas a mais
O Ano do Pensamento Mágico, Joan Didion
Podcast História Preta. Vale a pena assistir/ouvir todos os episódios disponíveis, mas deixo a recomendação desses dois que são especiais: Deus e o Diabo na encruzilhada: a origem do Blues e O invisível Gaúcho Negro (com Fernanda Oliveira). Bônus: a temporada sobre Palmares e o episódio sobre Funk Carioca.
Terminei A Paixão segundo G.H, de Clarice Lispector, e fico me perguntando porque ainda não tinha lido. Um amigo meu da época da faculdade tinha uma conta no twitter que fazia referência a uma frase que Clarice usa nesse livro. Finalmente entendi.
Vocês conhecem o trabalho do cantor Fatel? Esse rapaz baiano, de Juazeiro, faz coisas incríveis com a voz o o violão. Ao vivo, é ainda mais lindo de se ouvir.
Na semana de promoção da Amazon acabei comprando o livro Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MC’s. No dia que recebi a encomenda, coloquei o disco para tocar e acompanhei lendo letra por letra de cada música, após a contextualização que a o texto de Apresentação do professor Acauam Silvério de Oliveira nos dá.
Qualquer disco de João Bosco. Lembrei dele quando pensei em Fatel e resolvi acrescentar aqui a recomendação de ouvi-lo.
Acho que é isso.
Temos uma publicação?
Não é necessário sentir na pele a dor do outro para reconhecê-la né… Penso que alteridade seja reconhecer o outro como um sujeito diferente de mim e que, mesmo por isto, vai sentir diferente de mim. E esse sofrimento vai ser respeitado mesmo que não seja o meu.
Fico pensando como atravessar esses momentos de catástrofe deveria nos colocar não no lugar do outro, mas exatamente no nosso lugar porque é dele que vamos poder atuar para mudar algo, inclusive o que em nós contribui para esse tipo de evento climático.
Obrigada pelo texto. Fez sentido pra mim.
Sinto que preciso ler esse livro também! Abraço